Prefiro revisitar minhas memórias
pra me fazer sempre nova

17 de outubro de 2011

Soldados do tamarindeiro

À sombra do tamarindeiro a infância se confirma.

Quando se é criança as coisas sempre se mostram maiores do que realmente são. A sombra do tamarindeiro parecia sem fim. O limoeiro e a laranjeira pareciam anões, o coqueiro então, com os coquinhos bem alto quando vistos da janela de casa, não tinha mais tanta importância, mera mudinha.
Sob sua sombra, aonde o sol nem chegava por causa da espessa copa do tamarindeiro, o tempo parecia nem existir. Eram tantas brincadeiras no quintal vizinho. Tantas quantas são possíveis lembrar. Mas a que mais ganha pontos do saudosismo é a que mais se anuvia na recordação, aquela que julgo ter ganhado muitos episódios dirigidos apenas por mim, mas que a memória de criança se permitiu esquecer com maior facilidade: a de soldadinhos de tamarindos.
Já ouvi dizerem por aí sobre brincadeiras com espigas de milho, mangas verdes com pauzinhos, caixinhas de fósforos, cabos de vassoura... Mas até certo momento da vida não me lembrava dos dias em que essa árvore serviu de campo de batalha.
Os tamarindos eram soldados. Lutando contra besouros, tatuzinhos-bolas, formigas e outros inimigos imaginários do mau, ou do bem dependendo do meu interesse.
Os tatuzinhos acabavam neutros porque sempre se escondiam bem rápido sob a terra fofa.
E era o cachorro do vizinho que dava o alerta de perigo ao pisar nas folhas secas. E nessa hora as frutinhas azedas estavam sempre a postos, como os bons soldados que eram. As formigas não resistiam, os besouros tão pouco.
A armadura dos guerreiros era intransponível, e sob o comando da minha alta patente, agraciada por mim mesma, seu estilo de combate era infalível.
Quando os insetos se retiravam, e quando os filhos do vizinho estavam longe o bastante do meu reduto, eu baixava a guarda, me tranquilizava e olhava os pássaros catando os tamarindos. Lá se vão os soldadinhos... Lá se vai o meu exército... Lá se vai minha lembrança de criança...
O triste não é deixar de lembrar os outros dias de sombras frias do pé de tamarindo. É deixar uma história de meninice e pés descalços sem o fim merecido.
Não é inverdade arquitetar uma lembrança. Gosto da fluidez dessa mistura. Faz bem. Pois a realidade das crianças se mistura também às brincadeiras e sonhos.
E mesmo que nunca mais tenha visto uma árvore dessas, minha imaginação me supre com uma nova lembrança idealizada: deitada sobre os galhos e folhas secas, sob o infinito céu azul de primavera, vejo as folhas se balançarem com o vento, pronta para mais um duelo de tamarindos e insetos. No quintal do meu vizinho, debaixo do tamarindeiro, observando o cachorrinho e as crianças, que não paravam de abocanhar os tamarindos, as laranjas e tudo o que tivesse um gosto razoável, percebia que minha intenção era outra.
Eu sentia haver um desígnio para toda essa brincadeira, apenas não o compreendia completamente.

Foto ilustrativa/ Magno Silva

Éramos eu e os soldados, munidos com suas armaduras. Eu e meus inimigos, com toda sua insetidade. Hoje sou apenas eu, vislumbrando uma janela de memória.









Publicado na Revista Literária Plural nº5