Prefiro revisitar minhas memórias
pra me fazer sempre nova

27 de dezembro de 2011

No cerrado


Quando chove no cerrado
O cajueiro se assanha
As araras matraqueiam
As pétalas se derramam

Quando chove no cerrado
As moças molham as sandálias
O entardecer se refresca nas poças
E as crianças esperam atrás das vidraças

Quando chove no cerrado
Há um arco-íris em cada quintal
Enquanto a cigarra namoradeira entoa mais um hino
E a lavadeira se apressa para aproveitar o último suspiro do sol
Antes de mergulhar no infinito

Quando chove no cerrado
Os garupeiros das bicicletas levantam as pernas nas esquinas
E o picolezeiro se recolhe na fachada

E depois da chuva a gente chupa o laranja do horizonte como fruta
Doce
Suspirando profundamente no final...


Publicado na Antologia Poética Rima Rara
http://www.rimarara.com.br/
pelo concurso nacional NOVOS POETAS
da Vivara Editora

17 de outubro de 2011

Soldados do tamarindeiro

À sombra do tamarindeiro a infância se confirma.

Quando se é criança as coisas sempre se mostram maiores do que realmente são. A sombra do tamarindeiro parecia sem fim. O limoeiro e a laranjeira pareciam anões, o coqueiro então, com os coquinhos bem alto quando vistos da janela de casa, não tinha mais tanta importância, mera mudinha.
Sob sua sombra, aonde o sol nem chegava por causa da espessa copa do tamarindeiro, o tempo parecia nem existir. Eram tantas brincadeiras no quintal vizinho. Tantas quantas são possíveis lembrar. Mas a que mais ganha pontos do saudosismo é a que mais se anuvia na recordação, aquela que julgo ter ganhado muitos episódios dirigidos apenas por mim, mas que a memória de criança se permitiu esquecer com maior facilidade: a de soldadinhos de tamarindos.
Já ouvi dizerem por aí sobre brincadeiras com espigas de milho, mangas verdes com pauzinhos, caixinhas de fósforos, cabos de vassoura... Mas até certo momento da vida não me lembrava dos dias em que essa árvore serviu de campo de batalha.
Os tamarindos eram soldados. Lutando contra besouros, tatuzinhos-bolas, formigas e outros inimigos imaginários do mau, ou do bem dependendo do meu interesse.
Os tatuzinhos acabavam neutros porque sempre se escondiam bem rápido sob a terra fofa.
E era o cachorro do vizinho que dava o alerta de perigo ao pisar nas folhas secas. E nessa hora as frutinhas azedas estavam sempre a postos, como os bons soldados que eram. As formigas não resistiam, os besouros tão pouco.
A armadura dos guerreiros era intransponível, e sob o comando da minha alta patente, agraciada por mim mesma, seu estilo de combate era infalível.
Quando os insetos se retiravam, e quando os filhos do vizinho estavam longe o bastante do meu reduto, eu baixava a guarda, me tranquilizava e olhava os pássaros catando os tamarindos. Lá se vão os soldadinhos... Lá se vai o meu exército... Lá se vai minha lembrança de criança...
O triste não é deixar de lembrar os outros dias de sombras frias do pé de tamarindo. É deixar uma história de meninice e pés descalços sem o fim merecido.
Não é inverdade arquitetar uma lembrança. Gosto da fluidez dessa mistura. Faz bem. Pois a realidade das crianças se mistura também às brincadeiras e sonhos.
E mesmo que nunca mais tenha visto uma árvore dessas, minha imaginação me supre com uma nova lembrança idealizada: deitada sobre os galhos e folhas secas, sob o infinito céu azul de primavera, vejo as folhas se balançarem com o vento, pronta para mais um duelo de tamarindos e insetos. No quintal do meu vizinho, debaixo do tamarindeiro, observando o cachorrinho e as crianças, que não paravam de abocanhar os tamarindos, as laranjas e tudo o que tivesse um gosto razoável, percebia que minha intenção era outra.
Eu sentia haver um desígnio para toda essa brincadeira, apenas não o compreendia completamente.

Foto ilustrativa/ Magno Silva

Éramos eu e os soldados, munidos com suas armaduras. Eu e meus inimigos, com toda sua insetidade. Hoje sou apenas eu, vislumbrando uma janela de memória.









Publicado na Revista Literária Plural nº5

27 de setembro de 2011

Janela


Num sábado de chuva. Mais um sábado à noite chuvoso. Alguns pensam que a noite se perde, e que nada se aproveita. Eu não penso assim. Porque depois que as gotas escorrem pelos vidros parece que as vontades tempestuosas se acalmam. Os vidros embaçados, neblinando a visão, deixam as coisas mais bonitas. O que se passa por trás do suor das janelas? Só minha imaginação pode dizer, e com bem pouca certeza. Gosto assim. Não saber das coisas, (ou não saber de nada), na verdade me dá possibilidades pra saber de tudo! E isso me inspira. A chuva me inspira.

As gotas vão molhando meus cabelos e ombros e percebo que posso sentir frio. Os braços vão molhando. As mãos encolhendo pra nem sei onde. A bolsa se apertando ao corpo. E o jeans molhado nas pernas me deixa com vontade de estar em casa...

Ninguém escolhe sapatos pensando no tempo! Isso é um erro, percebo agora. "A moda sempre volta", dizem. E por isso guardei tanto tempo essas sandálias. Mas, por mais que eu goste delas, os pés molhados fora de hora incomodam. Mesmo assim, a chuva não derruba minhas expectativas.

É quando percebo aquela música. A minha. Aquela. Que deixa o corpo na espera de algo que se sabe que nunca virá. Mas, quem sabe? Depois que a chuva começou, eu deixei de saber das coisas. Senhor Gandhi: sou uma xícara vazia, como me aconselhou a ser!

Passos mais ligeiros pra que o som não escape. Ah, é a letra que diz tudo, mesmo que eu não entenda nada que ela quer dizer. E porque eu gosto tanto dela, ela acaba. Só lembrança. E a noite chuvosa faz bastante sentido depois que o coração bate mais forte, depois que se entende a necessidade dos pingos na janela e da visão turva.

Depois da canção, o cheiro que combina com a minha fome. A melancolia até resiste. Mas penso que é melhor deixar pra lá... A chuva enche minha xícara de novo (foi mal Gandhi).

E o que acontece depois é o que rola depois de um sábado solo: o domingo em que o sol vem pra secar as janelas. Meus olhos vêem de novo.